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LITERATURA

Zé do Caroço abre série de crônicas musicais assinada por Larissa Campos; leia

Crônicas Musicais: Larissa Campos estreia série no Mosaico MT com personagem de Leci Brandão
Imagem gerada por IA.

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Boas histórias prendem a atenção e isso é unânime. A questão é definir o que é uma boa história. O que faz uma história ser boa para você pode ser diferente do que faz uma história ser boa para mim. No gosto que fui moldando, ter um personagem consistente é ouro, dá corpo à narrativa e isso passa por levar o leitor a acreditar no personagem criado. No Jornalismo, sabemos o quanto os personagens são cruciais na condução de uma reportagem que, muitas vezes, existe somente para que a história de alguém seja contada.

Quando se fala em música, a letra é elemento que permite construir narrativas, destacar vivências de gentes, de lugares, sendo um ponto de identificação para quem escuta. O fascínio por ouvir e contar histórias me tornou colecionadora de canções em que um personagem específico é exaltado. Tenho um caderno para anotar os nomes e reflexões desse tipo de música. Virou objeto de pesquisa no cotidiano e decidi compartilhar partes das anotações com quem me acompanha por aqui.

Esta série começa por “Zé do Caroço”, canção escrita em 1978 pela compositora Leci Brandão. O que ela faz é se colocar como cronista, levando a quem ouve uma narrativa que, talvez, tivesse se perdido. Se hoje conheço “Zé do Caroço”, preciso agradecer à Leci: ela criou um verdadeiro hino, clássico obrigatório nas rodas de samba.

José Mendes da Silva, o “Zé do Caroço”, foi líder comunitário no Morro do Pau da Bandeira, em Vila Isabel (Rio de Janeiro – RJ). A história dele chegou até Leci por meio do jornalista Cláudio Vieira, integrante da equipe de reportagem do jornal O Dia. Depois de tomar conhecimento das atividades desenvolvidas por José Mendes, a compositora não conseguiu esquecer daquele personagem, ficou com ele guardado, até criar a linha melódica, a chance de eternizar o Zé.

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A cronista Leci não queria apenas apresentar o homem do serviço de alto-falantes, que se comunicava com os moradores, dava recados, avisava das correspondências recebidas. Ela escolheu destacar o conflito, a ameaça ao trabalho desenvolvido por José Mendes. Uma moradora, casada com militar, reclamava, chegou a chamar a polícia, porque o som dos alto-falantes atrapalhava seu momento de descanso, quando a TV exibia a novela preferida da mulher.

No trecho emblemático, a crítica a quem reclamava está assim registrada:

E na hora que a televisão brasileira

distrai toda gente com a sua novela

é que o Zé põe a boca no mundo

é que faz um discurso profundo

ele quer ver o bem da favela.

Nasceu, dessa forma, o hino que espalhou a história de “Zé do Caroço” e que hoje não pode ficar de fora das apresentações da Leci. Um dia, ela se apaixonou por um personagem e sossegou somente quando “recebeu”, como ela mesma diz, uma das composições mais importantes de sua carreira. Não satisfeita com um Zé, a letra lamenta o fato de não existir mais gente como ele.

Ai, como eu queria que fosse Mangueira

Que existisse outro Zé do Caroço.

No campo ficcional, a paixão por um personagem é, muitas vezes, a semente das narrativas, a fagulha capaz de incendiar páginas e páginas. As referências ao “Zé do Caroço” encontradas reforçam o fato da moradora incomodada ser esposa de militar. Não é à toa. No período em que o líder comunitário atuava e quando a canção foi escrita, o Brasil vivia os anos de opressão da Ditadura e, ao reforçar esse ponto (seja ele verdadeiro ou não), quem conta o caso evoca o jogo de forças dispostas no tabuleiro social daqueles tempos.

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Leci Brandão tem 80 anos, é filiada ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e exerce mandato de deputada estadual por São Paulo. Engajada nas lutas sociais ao longo da vida, também usou a música para expressar indignações e dar voz a quem não costuma ser ouvido, como José Mendes da Silva, o nosso Zé, um homem negro, dono de tendinha e líder comunitário no Morro do Pau da Bandeira.

Na música e fora dela, o Morro tenta ser ouvido, busca fazer suas mensagens chegarem a quem não conhece a realidade das comunidades. Em entrevista ao podcast “Mais Preta”, a poeta e atriz Elisa Lucinda destacou a missão dos MCs. Independente de gostar ou não das produções de artistas como Oruam e Poze do Rodo, é inegável o papel deles — cronistas de hoje — quando se trata de construir relatos da vida nas comunidades.

Ter a cara do crime num país como o Brasil é correr sempre o risco de ser calado. Tentaram calar o Zé, tentam calar os MCs. É a história repetida, vivida por quem, no fim, só deseja “que permaneça essa tranquilidade na comunidade”.

*Larissa Campos é jornalista e escritora, nascida em Manaus (AM) e com trinta anos de residência em Mato Grosso. Especialista em Escrita e Criação, lançou seu primeiro livro, A casa do posto, pelo selo Auroras (da editora Penalux) em 2022, e com ele recebeu o Prêmio MT Artes, promovido pela Associação Cultural Cena Onze, em parceria com a Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer (Secel) de Mato Grosso. Tempos íntimos, seu segundo livro, marca o retorno da autora ao selo de estreia, numa reunião de contos inéditos selecionados para publicação pelo edital de fomento Estevão de Mendonça. Outros textos da escritora estão disponíveis no endereço https://malabaristadepalavras.substack.com

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